segunda-feira, 24 de maio de 2004

Desabafo

Acho que a paixão pelo motociclismo vai ficar suprimida por alguns tempos... pelo menos até que consigamos dissociar as imagens.
Sempre deixamos claro que preferiamos que ele colocasse uma bola vermelha no nariz e saísse a arrancar sorrisos de pirralhos emburrados, não havia quem tivesse mais talento pra isso, ao invés de arriscar-se pelas ruas.
Ninguém tinha conta de quando ele ficava doente, se ficou triste, se estava feliz. Raramente participava de reuniões em família. Cada um tem uma lembrança diferente, de um momento específico e exclusivo. Uma frase, uma palavra, uma gargalhada, um favor, uma ajuda, um abraço.
Tiraram da gente alguém muito especial. Criou-se um grande vácuo. O olhar distante dos irmãos, que tentavam a todo custo manter a calma. A saudade dos sobrinhos, que perderam um verdadeiro companheiro. Os pais, para a reação destes não há palavras para descrever. Por trás das mãos marcadas pelo tempo que cobriam o rosto, caiam insistentes lágrimas num ruidoso choro. O choro de quem vela por uma parte de si que vai embora. Um choro de dor, uma dor quase física: insuportável. A cada abraço, um desabafo, uma demosntração de inconformação.
Os amigos, até então descrentes da notícia, entraram em verdadeiro desespero ao ver o corpo em situação fúnebre. Descontrolados, gritavam pelo seu nome, imploravam debil e inutilmente pra que ele voltasse. Nas preces em bom volume, colocavam em cheque toda a força de vontade, toda perseverança que outrora demonstrava e que tornara-se a sua marca. Pode-se ter a certeza de que não foi ele quem escolheu tal destino.
Mais uma vítima de um mundo violento, e é isso que mais nos revolta. Revolta: é esse o sentimento que alia-se a dor depois de um tempo.
As crianças que têm sorte. Elas sentem sim, sofrem sim, mas sentem e sofrem somente pela perda e pela saudade.
Não tive coragem de vê-lo naquele estado. A cabeça inclinada pra trás, as flores que o cobriam, o povo em volta orando, uns debruçando-se desesperados sobre o corpo, tudo parecia querer me poupar de registrar aquela como última imagem. No fim, acho que faltou coragem mesmo.
A última imagem, a que ficou e que me vem a mente com a lembrança da perda é a de um cara sorrindo por detrás de um aceno tímido. E é essa que eu vou guardar.
Volto a citar que morte num é um assunto muito tranquilo pra mim. Ainda mais mortes desse tipo.


Sei lá, desabafo.

Mas a [minha] vida segue,,

Um comentário:

Pedro Markun disse...

que a morte nunca deixe de lhe causar estranheza
porque não há nada pior que parar de sentir pela vida

:*